SONHARIUM

A investigação artística e visual de Helô Mello, na última década, tem se enveredado pela reflexão acerca das tramas envolvidas na temporalidade, sobretudo no que tange à potência estética das memórias afetivas e fabulações, quando criam hiatos e trafegam pelas metaimagens selvagens. 

  • sucessivas de experimentações entre a fotografia e outros meios – como ocorrido no projeto artístico “Horizonte Suspenso”, em que fotografias analógicas eram submetidas a uma série de intervenções e a uma premente convocação dos acasos do processo – em Sognarium, a artista visual justapõe imagens encontradas num arquivo adormecido à experiência radical do isolamento e à consequente percepção apurada dos ciclos vivos de uma jabuticabeira e suas metamorfoses ao longo de um ano.

    Quando o tempo suspendeu-se no Brasil e no mundo, em março de 2020, devido à crise sanitária, e com ele interromperam-se encontros e laços sociais, Helô Mello percebeu-se tomada pela impotência de viver no curso do seu próprio tempo, de suas rotinas já familiarizadas, postas agora para fora de sua própria vida. Eis que essa sensação abismal e dilacerante – comungada por tantas outras vidas no mundo – encontrou um lugar de afetação.

    Em um pequeno canto do lado de fora da grande casa que se encontra numa zona rural, no interior de São Paulo, deparou-se com velhas imagens diapositivas também postas para fora da casa: expulsas de um tempo, suspensas de suas significações, “órfãs” da guarda de arquivos ou álbuns de família. Lá estavam adormecidas.

    Foi quando, em um rompante criativo, a artista visual imaginou as vidas dessas imagens fabulando no ambiente em que ambas estavam. As imagens abandonadas, a casa circundada por árvores, terra, outras plantas, céu, ar, e a própria artista inauguravam ali uma relação, que para Helô poderia ir mais longe em uma experimentação de coexistência com essas imagens. Era preciso emancipá-las para que elas pudessem reencontrar a vida, suas interações com o mundo, com as coisas vivas. Deixá-las em liberdade com o ambiente, com a casa, com as emoções, desejos e sonhos. Delirar com elas, em um exercício imaginativo e de memória, em um devaneio libertário, capaz de atravessar essas imagens e com elas construir outras espessuras, além de suas superfícies opacas (e não vistas).

    Foi assim que, ao longo de dois anos de trabalho, a artista visual deu plena liberdade às imagens fazendo desse convívio, embora íntimo, desprovido de interesse na reconstituição de seus passados. As imagens que estavam no escuro de um porão, metáfora clara das imagens recalcadas no nosso inconsciente, agora ganhariam a luz, num gesto artístico. Assim, libertas, elas puderam ver o mundo filtrando-o com os jogos cromáticos enclausurados nas velhas molduras do tempo analógico. A partir desse gesto uma sucessão de eventos constituiu a experiência profunda da artista com ess tempo distópico.

    O ciclo da vida da jabuticabeira. A alternância das estações. Os dias de chuva. O luzir do sol. Noites enluaradas. O vento varrendo invernos. A florescência urdida pelos pássaros. Os olhos negros verdes tímidos do fruto. Insetos em sexo. Açúcar roxo. Formigas em procissão. A serpente onipresente. O temor do invisível. A sublimação dos enigmas da vida. O desejo reprimido de embalar o neto. Imagens esquecidas num porão. Aquarelas de jabuticabas. O neto. Imagens esquecidas num porão. Aquarelas de jabuticabas. O papel de parede ancestral. Sonhos vertidos em imagens. Imagens invertidas de um sonho.

    Ao abrir a janela-diafragma de sua casa-câmera, Helô Mello deflagrou o esmaecimento das fronteiras entre interior e exterior, realidade e ficção, cronologia e atemporalidade. A artista passou, então, a confabular. Sognarium tornou-se esse dispositivo de fábulas:

    As imagens sonham ventos,
    sonham tempos,
    sonham inventos
    Entretempos.
    As imagens memorizam sonhos
    Os sonhos imaginam que sonham imagens

    Ao final desse ciclo de experiências, cristalizado agora neste fotolivro, somos arremessados ao imaginário de uma matéria nebulosa envolvente, furta-cor, fantástica. A matéria indomável do devaneio que especula as fronteiras de um olhar e renuncia a mimese da representação para se aventurar nos labirintos insondáveis daquilo que não é da ordem do visível, mas das emoções e dos mistérios da vida.

    As experimentações de Helô Mello criam e cativam uma instância em território flutuante, terno e diáfano. As imagens, gestadas a partir da vertigem solar, espocam feixes luminosos, irradiam espectros cromáticos, reformam a forma ordinária e conformam um exercício de experiência do sensível que só pode se efetivar se buscados no escuro e de olhos bem fechados. Imagens que vigiam vigílias: abrem-se e desdobram-se em estouros luminosos que fazem de uma imagem, muitas imagens, aparições de seres fantásticos, em uma alucinação quase quimérica.

    Sognarium é a convocação manifesta do campo sensorial que busca poeticamente a vida das imagens que escapam das rédeas da razão para apresentarem de forma delirante a espessura de outras paisagens possíveis. Paisagens a serem sonhadas e cultuadas como mistérios sobre a nossa existência e transcendência.

    Eder Chiodetto e Fabiana Bruno